Será que a afirmação de que a cannabis pode ser a porta de entrada a outras drogas é um fato científico? Ou seria na verdade um antiquada tática para gerar o medo a respeito do uso da cannabis? Esta é uma questão importante. Afinal, a teoria da “cannabis como porta de entrada” para outras drogas está no centro da discussão pública em relação à sua segurança.
Mas o que significaria ser uma droga que abre as portas para outras, mais pesadas? Há alguma evidência por trás dessa teoria?
Importante entender o que determina essa ideia: que o uso de uma substância – nesse caso, a maconha – potencialmente conduz o usuário a experimentar substâncias pesadas. Ou seja, que a maconha, por si só inofensiva, abre caminho para a experimentação de drogas perigosas.
Os defensores dessa ideia trabalham sobre uma teoria de “causa e efeito”. Eles não consideram fatores sociais, familiares, de saúde mental ou culturais que possam aumentar a probabilidade de uso de drogas pesadas. Eles também não refletem sobre a noção de que “correlação” não quer dizer “causalidade”.
A Drug Policy Alliance, organização americana sem fins lucrativos que visa erradicar as políticas da Guerra às Drogas (movimento político iniciado nos EUA que levou a cannabis a ser proscrita em todos os países do mundo), afirma que “as pesquisas não confirmam a teoria de que a maconha é uma droga de passagem”.
Como começou o mito da “porta de entrada para outras drogas”?
De acordo com a Drug Policy Alliance, a teoria foi introduzida pela primeira vez pelo médico Robert L. DuPont Jr.. Em seu livro Getting Tough on Gateway Drugs: A Guide for the Family (Resistindo às Drogas de Entrada: Um Guia para a Família), ele afirmou que é pouco provável que jovens que não usam maconha se envolvam com outras drogas ilegais. Ou seja, ele não afirmou que a maconha os leva a isso.
A organização argumentou que o livro confundiu correlação com causalidade. “Usando a mesma lógica, pode-se argumentar que beber leite é uma porta de entrada para o uso de drogas ilícitas, já que a maioria das pessoas que usa drogas ilícitas também bebeu leite quando criança”, divulgou em um documento.
Em vez disso, a organização argumentou que algumas pessoas têm mais probabilidade, e estão mais dispostas, de experimentar drogas do que outras. Ou seja: a maconha, por ser a substância ilícita (em diferentes países) mais amplamente disponível e usada no mundo, leva pessoas a usarem drogas menos populares, como cocaína ou heroína, se comparadas àquelas que nunca experimentaram nenhuma outra.
Ou, para simplificar, as pessoas que usam outras drogas têm maior probabilidade de também terem experimentado a maconha. Não o contrário.
“A maioria das pessoas que usaram cannabis não passam a usar substâncias mais pesadas”
O argumento da cannabis como porta de entrada para outras drogas desviou a atenção do público sobre seus potenciais benefícios. De acordo com artigo publicado no Connecticut Post, isso provocou a suspensão das pesquisas que vinham sendo realizadas sobre os benefícios da maconha. “Como resultado, a pesquisa da cannabis usada com fins medicinais continua atrasada, não alcançando seu potencial como alternativa aos opioides. Além disso, essa difamação levou a uma guerra contra a maconha, com a aplicação da lei afetando desproporcionalmente às comunidades negras”.
Segundo artigo publicado no Instituto Nacional de Abuso de Drogas, órgão do governo dos EUA, “algumas pesquisas sugerem que o uso de maconha provavelmente precede o uso de outras substâncias, assim como a dependência delas”.
A idade é mais importante do que a substância
Neste texto, também afirmou-se que pesquisas mostraram que o uso de marijuana expõe as pessoas ao risco de desenvolver dependência alcoólica e de nicotina. Utilizando como referência um estudo sobre dopamina e canabinoides realizado em ratos, atestou que “isso pode explicar a vulnerabilidade acentuada de usuários que utilizaram a cannabis quando jovens para a dependência de outras substâncias em outros períodos da vida”.
Em seguida, o artigo esclareceu que essa descoberta está alinhada com a teoria de que a marijuana pode atuar como uma porta de entrada, mas ressaltou que “a maioria de seus usuários não utilizam substâncias pesadas”.
O artigo também admitiu que outros fatores são fundamentais na avaliação do risco do uso de drogas pesadas. Um exemplo é o ambiente social em que o usuário vive. Uma teoria alternativa para essa hipótese pode ser que “aqueles que são mais vulneráveis ao consumo de drogas são simplesmente mais propensas a fazer uso de substâncias prontamente disponíveis, como maconha, tabaco ou álcool, e suas subsequentes interações sociais com outras pessoas que usam drogas aumentam suas chances de experimentá-las”.
O que dizem as pesquisas
Existem evidências científicas a respeito do conceito da “droga como porta de entrada” em termos mais gerais, muito embora a substância em si não ocupe nelas um papel crucial. Mais importante do que esse dado é o cronológico, sobre “quando” a pessoa experimentou uma droga pela primeira vez. De acordo com um estudo de 2016 publicado na Neuroscience Biobehavioral Review, “há evidências convincentes de que a exposição de adolescentes a drogas pode induzir a consequências neurais, cognitivas, afetivas e comportamentais persistentes”, o que poderia levar a um maior uso de drogas no futuro.
Um estudo de 2016 no Preventive Medicine Reports analisou dados reunidos ao longo de 14 anos pelo National Longitudinal Study of Adolescent to Adult Health e descobriu que, “claramente, o uso de maconha no início da adolescência aumenta a probabilidade do uso contínuo de substâncias psicoativas ao longo da vida”. Por outro lado, ele informou não ter sido constatado que a proporção da população usuária de álcool, tabaco ou maconha no início da adolescência apresentasse padrões de aumento do uso de maconha, drogas ilícitas ou cocaína ao longo do tempo da pesquisa (aproximadamente 14 anos).
Além disso, o estudo defende que a educação antidrogas deveria “pesquisar a predisposição de jovens a doenças mentais em função da utilização precoce de drogas”.
O que deveria ser considerado tema de pesquisa
Um estudo de 2015 estimou que 44,7% das pessoas que consumiram cannabis ao longo da vida utilizaram outras drogas ilícitas em algum momento. Mas afirmou que “aspectos sociodemográficos e transtornos psiquiátricos pressagiam a progressão do uso de cannabis para uso de outras drogas ilícitas”. Por fim, apontou que o maior risco de uso de drogas ilícitas por usuários de cannabis com transtornos mentais deve ser levado em consideração quando estuda-se aplicar mudanças à regulamentação da cannabis.
Ironicamente, outros pesquisadores apontam a nicotina como uma porta de entrada para outras drogas, principalmente no que diz respeito à cocaína.
Vale dizer que as pessoas podem, sim, desenvolver dependência. De acordo com um estudo realizado em 2010, 1 em cada 10 pessoas que usam cannabis criam por ela dependência física, psicológica ou social. A dependência física pode provocar dores de cabeça ou perda de peso, com sintomas emocionais como irritabilidade, ansiedade e insônia.
No entanto, assim como acontece com outras substâncias, diferentes fatores podem gerar dependência, incluindo o histórico familiar em termos de vício ou de predisposição a doenças mentais.
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