As associações canábicas no Brasil são, hoje, a maior porta de entrada de pacientes ao universo da cannabis medicinal. Essa posição é fruto de anos de acolhimento de pacientes e de luta jurídica, que vão muito além do fornecimento de medicamento às populações que não se incluem nesse mercado pelo caminho traçado pela medicina tradicional, que se configura pelo muitas vezes inacessível (em termos financeiros) roteiro “médico – prescrição – importação do medicamento no exterior”.
Seu papel, na verdade, não se limita ao fornecimento de óleos, cremes ou outros produtos com cannabis. Em função de sua atuação política e social, as associações canábicas tornaram-se o mais poderoso elemento da luta pela democratização do acesso à cannabis medicinal no Brasil.
Na cannabis, a busca pela cura
Organizações sem fins lucrativos (ONGs), elas nascem de forma orgânica – motivadas pelo apelo de mães e familiares, na maioria dos casos –, resultado da necessidade e da urgência de encontrar solução e alívio para problemas de saúde que não são bem atendidos, ou absolutamente desatendidos, pela medicina tradicional.
Ao oferecer informação, acolhimento e produtos à base da planta, como óleos e pomadas (confira aqui algumas das associações já estabelecidas no Brasil), associar-se a uma delas é na verdade o primeiro passo de uma jornada que vai além do uso terapêutico da cannabis. Ela inclui também estabelecer novas relações com outros pacientes, adquirir conhecimento e exercer o direito de escolha.
O acesso provido pelas associações canábicas
“Uma característica das associações é formar o pensamento do uso da cannabis na perspectiva do paciente e servir como rede para pressão e busca de direitos no judiciário e no legislativo. Temos tido bons resultados justamente por causa da pressão das associações”, diz o advogado Emílio Figueiredo, fundador, com outros colegas, do coletivo jurídico Reforma, uma rede que presta assistência, muitas vezes voluntária, a pacientes que buscam na Justiça o direito de cultivar cannabis para tratamento médico.
Emílio atua no mundo da cannabis há mais de dez anos e está empenhado na criação de uma federação representativa para as associações. “Já temos coordenações em todas as regiões do Brasil, além de uma minuta de estatuto pronta e aprovada”, conta. No total, 24 organizações estão na lista de fundadoras. A federação simboliza a maturidade do movimento, além de sinalizar que seus integrantes concentram forças para as próximas batalhas no aspecto da regulamentação da cannabis no Brasil.
Lucros x direito universal
Um dos objetivos da federação é garantir o lugar das associações na regulação das leis de mercado em condições menos desiguais. Aliás, há uma disputa em curso. “Dez anos atrás, ninguém falava de cannabis medicinal como um grande slogan”, diz Emílio. “Quem falava estava na Marcha da Maconha ou cultivava maconha em casa. No entanto, agora a gente vê a apropriação dessa luta por vários entes industriais e de classe, como associações de empresas da indústria química e de insumos farmacêuticos. A cannabis chegou ao mainstream.”
Reflexão semelhante foi proposta pelo neurocientista Sidarta Ribeiro em debate promovido pela startup The Green Hub, no último dia 21 de outubro. “A cannabis se presta maravilhosamente bem para um ecossistema bastante diverso com micro, pequenos e grandes produtores. Assim, se isso for garantido, barateia custo e tem escala. É preciso uma regulamentação que contemple o acesso de todo mundo. Sem autocultivo e sem o direito de as associações fazerem isso sem fins lucrativos, isso não vai rolar.”
Primeiro oponente: o estigma
As associações de familiares e pacientes começaram a surgir no Brasil em 2014 com a missão de garantir a pacientes brasileiros o acesso a medicamentos formulados com cannabis. Era um momento em que a planta ainda lutava fortemente contra o estigma provocado por décadas de proibição, motivada pela Guerra às Drogas americana. Assim, elas trouxeram consigo uma condição diferente de outros medicamentos existentes no mercado: a ideia de que, para participar deste universo, é preciso antes desconstruir preconceitos (os próprios e os dos outros).
Cada associação canábica no Brasil tem uma dinâmica própria e o que elas fazem está determinado em estatuto. Nem todas, pelo menos até o momento, estão aptas a fornecer medicamentos, realizar cultivo ou investir em pesquisas, por exemplo. Portanto, há aquelas que são focadas em conhecimento, educação. Outras, em eventos. Mas, no fim das contas, existe entre elas um fio condutor de cooperação e de troca de experiência que tende a fortalecer o associativismo e, é claro, a cultura da cannabis.
Habeas Corpus como fuga da burocracia
A Associação de Apoio à Pesquisa e aos Pacientes de Cannabis Medicinal do Rio de Janeiro (Apepi) tem entre suas atividades oficinas de plantio. “É um universo completo”, diz a estudante Carolina Freitas, que trabalha no setor de acolhimento a pacientes da Apepi. Ela conta que fica evidente entre os participantes que plantar o próprio remédio é por si só uma atividade terapêutica. “Depois de experimentá-lo, as pessoas querem buscar o habeas corpus para não estarem submetidas à burocracia”, comenta. O custo do altocultivo é também muito reduzido em relação aos valores dos medicamentos hoje disponíveis, inacessíveis à maior parte da população brasileira.
A união de pessoas promovida pelas associações canábicas no Brasil, unidas por um mesmo fim e sem objetivo de lucro, é no entanto uma cena que não encontra paralelo em outros países. “O que chega mais perto é o que aconteceu na Califórnia na primeira onda de legalização após 1996, e não na atual. Na época, os pacientes se organizavam em coletivos para poderem cultivar e trocar o remédio. Isso já foi dominado pelas empresas. Ou seja, o pêndulo foi para outro lado”, diz Emílio.
Como as associações canábicas estão organizadas
A associação é uma organização orgânica, a qual nasce sem grande aporte de capital. No Brasil, as empresas tradicionais respondem a exigências estruturais maiores. Porém, associações do terceiro setor, para existir, precisam contar apenas com pessoas reunidas em torno de um objetivo comum.
No entanto, apenas existir é pouco: a ação é a base de tudo. E a atividade do dia a dia necessita de suportes diversos, como jurídico, administrativo, além do psicológico. Emílio completa: “Quando falamos sobre associações canábicas no Brasil que cultivam e produzem o óleo, precisamos lembrar que elas contam com suporte agronômico, botânico, farmacêutico, químico, médico etc.”. Assim, estruturá-las de forma profissional é hoje seu maior desafio.
Quem pode plantar cannabis no Brasil?
Sem contar cidadãos que obtiveram autorização judicial para cultivo doméstico no país por meio de processos jurídicos, só duas organizações, até agora, podem plantar cannabis para produzir os óleos no Brasil. Primeiro, saiu o alvará da Abrace Esperança, da Paraíba, em 2017. Depois, em julho de 2020, a Apepi também obteve a liminar.
A Apepi se formou em 2014, em reuniões de mães de filhos com epilepsia refratária no Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). As primeiras famílias a se engajarem na iniciativa conheciam os efeitos positivos dos óleos da cannabis na diminuição das crises de convulsão provocadas pela epilepsia severa. A advogada Margarete Brito, fundadora e coordenadora executiva da Apepi, era uma daquelas mães. A filha Sofia, que na época tinha 4 anos e tem uma síndrome rara, usa canabidiol. Referência no ativismo da legalização da maconha medicinal, Margarete foi a primeira pessoa no Brasil a obter, em 2016, um habeas corpus preventivo para o autocultivo da cannabis.
Inicialmente, as atividades da Apepi resumiam-se a encontros para compartilhar experiências entre pacientes e buscar apoio, soluções e formas de comprar medicamento, conta Romário Nelvo, doutorando e mestre em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ele hoje trabalha na frente de acolhimento da Apepi. “Uma vez que agora a cannabis medicinal é autorizada no Brasil desde que o médico a prescreva, um dos esforços da Apepi é facilitar, baratear e agilizar o acesso”, diz Romário. “O que as pessoas mais têm é urgência, muitas vezes psicológica, de ver que o medicamento está na mão e que ela pode começar a luta pela saúde. As pessoas que precisam do medicamento não têm o tempo da burocracia, do Estado, da vigilância sanitária.”
Associações canábicas no Brasil promovem acolhimento
Carolina Freitas, estudante de História na Universidade Estadual do Rio de Janeiro e de Direito na Universidade Estácio de Sá, descobriu em 2015 que tinha epilepsia refratária. Usou medicamentos alopáticos até 2017, quando encontrou na cannabis uma solução mais eficaz. Envolvida na luta pela democratização e legalização, foi chamada por Margarete para trabalhar no acolhimento da Apepi. Para isso, teve de calibrar a comunicação, aprender a ouvir e a lidar com realidades diferentes.
“Muitas pessoas chegam cansadas, com as receitas nas mãos, e acham que comprarão a cura. Assim, precisamos explicar pacientemente que não se trata de milagre”, afirma. “Elas querem respostas, às quais precisamos estar preparados para oferecer, e também saber admitir quando não sabemos.”
A Apepi tem um perfil multifacetado, na opinião de Carolina. A história desta associação canábica começou com a necessidade das mães e, em determinado momento, assumiu uma característica política muito forte, de debate, democratização de acesso e de compartilhamento de conhecimentos sobre a planta, dosages etc. “Se em 2014 essa luta surgiu pela união das mães de filhos epilépticos, hoje em dia vemos um número crescente de adultos com Alzheimer e Parkinson buscando tratamento.”
Apesar de manter em seu site uma lista colaborativa de médicos que prescrevem receitas para canabidiol, a Apepi oferece também atendimento próprio. Há uma agenda, as consultas custam R$ 280 – ou quanto o paciente puder pagar – e são feitas por profissionais especializados em medicina da família. Associados que podem e querem contribuem com mais; por conseguinte, gestos assim costumam ajudar a fechar as contas da associação.
De atendimento jurídico e psicológico a cursos e oficinas
A Apepi exige ao associado o cadastramento, que custa a partir de R$ 30 por mês, e oferece venda de óleos importados e artesanais, atendimentos jurídico e psicológico, cursos e oficinas de plantio e de extração do canabidiol. O acolhimento é uma conversa que, primordialmente, está ocorrendo via WhatsApp neste momento de pandemia. Carol, Romário e Margarete revezam-se nessa escuta.
Óleos artesanais são fornecidos aos associados desde 2018. No entanto, como forma de desobediência civil, a organização extraiu canabidiol antes de obter a liminar de cultivo associativo no dia 15 de julho de 2020. O próximo capítulo é, portanto, concretizar o projeto de uma sede campestre, em que serão cultivadas 10 mil plantas. A Apepi tem hoje 900 associados e entrega por mês 100 frascos de óleos importados e 400 de fabricação própria. O artesanal custa R$ 150, mas o preço pode ser negociado. A ideia é acolher, e não separar ou erguer muros.
Solução terapêutica vem antes do dinheiro
Para Cassiano Teixeira, fundador da Abrace Esperança, o que move as engrenagens da associação é o sentido de socorrer o outro e a oportunidade de encontrar por conta própria uma ferramenta que possa resolver o problema que os medicamentos, altamente lucrativos para a indústria farmacêutica, não têm resolvido. “A gente não coloca o dinheiro na frente e, inegavelmente, essa é uma diferença importante entre as associações e a indústria farmacêutica”, diz.
A Abrace foi registrada como associação em João Pessoa em 2015, depois que o Conselho Federal de Medicina deu aval de uso para epilepsia. “Hoje somos 66 pessoas trabalhando na associação, sendo 14 profissionais de acolhimento (enfermeiras, pacientes, mães). Temos agrônomos, farmacêuticos, químicos, assistentes sociais, enfermeiros. Não indicamos médicos, mas oferecemos em nosso site uma lista de profissionais que é alimentada pelos próprios pacientes”, explica Cassiano.
Atendimento diferenciado em função da Covid-19
Em consequência das dificuldade impostas pela Covid-19, a associação criou uma rede de mães em todo o Brasil para manter e ampliar o atendimento. “Entretanto, o atendimento presencial está suspenso e hoje a gente tem só um guichê no centro de João Pessoa. Estamos agora construindo cabines de vidro para ver se conseguimos voltar a atender presencialmente no ano que vem”, diz Cassiano. “Todavia, em caso de pacientes novos, temos o cuidado de encaminhar para as atendentes mais experientes.”
Na Paraíba, a Abrace tem plantação de cannabis em João Pessoa e Campina Grande. São, segundo Cassiano, 10 mil plantas e a capacidade cresce de acordo com a área plantada. Atuamente, a Abrace fornece medicamentos para 10 mil pessoas e tem a finalidade de chegar a 100 mil atendidos em dez anos. O estatuto da associação determina que 20% da produção sejam destinados à doação. “Temos cerca de 2 mil famílias que recebem os medicamentos gratuitamente. Ademais, o frete é gratuito”, diz Cassiano.
Luta permanente pelo direito universal de acesso
Há produtos ricos em THC, ricos em CBD e balanceados. Além dos óleos, a produção inclui pomadas, spray nasal e pílulas. Um departamento de pesquisa e desenvolvimento estuda adesivos e outras formas de consumo que melhorem a absorção.
Para ter acesso à associação, o primeiro passo é baixar o aplicativo da Abrace ou buscar as informações no site. De forma geral, documentos necessários são a indicação médica, um laudo, e uma procuração assinada para que a associação possa ajuizar uma ação – todos são associados jurídicos com causas em comum e autorizam a Abrace a ajuizar, explica Cassiano. Daí é preciso pagar uma taxa anual (R$ 350 reais). O cadastro passa por uma auditoria e é liberado em dois ou três dias. “O papel das associações não é só dar o acesso, mas também garanti-lo. Lutamos para que este seja um direito universal”, resume Cassiano.
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