Você certamente já ouviu falar sobre os benefícios da cannabis medicinal para o alívio de sintomas de diferentes doenças neurológicas, como as crises epilépticas. Também acompanhou notícias sobre a batalha de pais de crianças autistas, no Brasil e em outros países, pelo direito de tratar seus filhos com extratos da planta.
Aqui você encontrará um novo ângulo dessa história: como um médico brasileiro formado pela medicina ocidental e tradicional – “ou seja, baseada em evidências”, como afirma o entrevistado – toma conhecimento do potencial da cannabis medicinal e passa a inclui-la em seu rol de propostas terapêuticas.
Confira a seguir a história do dr. Ibsen Damiani, neurologista formado pela Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo – onde atua hoje como professor de Neurologia –, e mestre em Neurologia pela Universidade de São Paulo. Em seu consultório particular, no bairro da Lapa, em São Paulo, ele atende a cerca de 300 pacientes por mês. Destes, em média dez saem com a prescrição de óleo de canabidiol, o tão falando “óleo de CBD”.
Em tempo: CBD é um dos mais de 100 canabinoides, ou seja, elementos da planta da cannabis, com benefícios comprovados cientificamente em diferentes transtornos da saúde. Importante explicar que o CDB não provoca efeitos psicoativos – a polêmica sensação de “high”.
Quais as reações mais comuns de seus pacientes quando o senhor lhes prescreve canabidiol?
Frente à proposta de tratamento com CBD, as reações são diversas, especialmente por parte do acompanhante. Alguns ficam espantados, demonstrando não entender exatamente o que estou propondo; geralmente acham que estamos falando sobre a planta em si. Outros preferem antes consultar a opinião de um outro parente. Por outro lado, há os que se mostram interessados e aceitam iniciar o tratamento, enquanto outros já ouviram falar sobre o assunto e dizem que esperavam que eu fizesse justamente essa proposta terapêutica. Também já houve casos em que os pacientes afirmaram ter vindo à consulta já sabendo que posso prescrever medicamentos com compostos de cannabis medicinal.
Há muita desinformação por parte de pacientes e acompanhantes em relação ao potencial terapêutico da cannabis?
Sim, principalmente quando o acompanhante não está preparado para esta proposta de tratamento. Por vezes, ele comenta com o paciente – quando este compreende pelo menos parte da conversa – que estamos falando sobre “maconha”, e que o paciente vai tomá-la para ficar “paz e amor” ou “ter um barato”. Procuro corrigir imediatamente, explicando que o efeito a que ele se refere, conhecido como “high”, pode ocorrer com o consumo da planta, mas não do medicamento que prescrevo.
Gostaria de entender como se deu seu primeiro contato com a cannabis medicinal. O senhor costumava receitar remédios fitoterápicos a seus pacientes?
Minha formação médica é baseada nos conhecimentos da medicina ocidental, a qual utiliza medicamentos e técnicas convencionais – ou seja, a medicina baseada em evidências. Consequentemente, nunca fui um grande prescritor de medicamentos fitoterápicos, muito embora sempre acreditasse em seus possíveis efeitos benéficos. Aliás, sempre argumentei que os fitoterápicos também podem apresentar efeitos colaterais.
E como a cannabis surgiu em sua rotina profissional?
Certa vez, em 2016, atendi um paciente com Doença de Parkinson. Tratava-se de um caso extremamente difícil, não só pela variedade de remédios em uso concomitante, mas porque estavam em doses muito elevadas, com poucos resultados e efeitos colaterais, como surtos psicóticos, os quais também podem ser causados pela própria evolução da doença. Ele me trouxe um vidro contendo cannabis medicinal, sem rótulo ou concentração explícita. Disse que um amigo lhe deu e estava se sentindo bem melhor. Então comecei a prescrevê-la para o paciente. A empresa que fabricava o produto passou a encaminhar para mim pacientes com diversas doenças, nem sempre neurológicas: alergia, ansiedade, distúrbio de sono, Doença de Alzheimer, Doença de Parkinson, epilepsia. À medida que isto começou a acontecer, passei a estudar e me interessar pelo assunto, e os resultados foram surgindo.
Quais os problemas dos pacientes para os quais entendeu que a cannabis medicinal é uma solução melhor, alternativa ou única para ajudá-los?
Verifiquei, dentro da neurologia, algumas áreas muito promissoras e com resultados animadores, como a dor crônica de difícil tratamento, seja de origem neuropática (por lesão cerebral, medular ou de nervos periféricos – neurites), processo inflamatório local (lesão de tecidos ósseos – artralgias, musculares, pele etc.) ou de mecanismos mistos e não bem conhecidos, como a fibromialgia, e dores associadas ao parkinsonismo que podem responder à cannabis. Não foram todos os pacientes que melhoraram, mas muitas vezes obtivemos a redução de doses e de variedades de medicamentos analgésicos, opioides (que podem causar mais estados confusionais, principalmente em idosos) e anti-inflamatórios (que, de maneira geral, não devem ser utilizados de forma contínua e por muito tempo, devidos a efeitos colaterais). Já há estudos mostrando as propriedades anti-inflamatórias dos canabinoides.
Em sua experiência, o quanto a cannabis pode ajudar na redução do uso de outras medicações?
Quando se trata de pacientes com surtos psicóticos nos quadros demenciais e parkinsonianos ou doenças semelhantes, a grande vantagem é poder reduzir dois grupos importantes de medicamentos psicotrópicos que são necessários mas que, por outro lado, podem causar efeitos adversos, especialmente nos idosos: os neurolépticos (risperidona, quetiapina, olanzapina, halopedidol etc.) e os benzodiazepínicos (diazepam, alprazolam, clonazepam etc). Com a cannabis, os pacientes podem reduzir riscos de desenvolver sintomas parkinsonianos causados pelos neurolépticos e ficam mais ativos, mas não necessariamente agitados. Eles usufruem de melhor qualidade de sono sem ficarem sonolentos ou apáticos no período diurno.
Há outras melhorias proporcionadas pela cannabis no campo neurológico que valem a pena ser citadas?
Os pacientes que recebem cannabis apresentam melhora de sintomas cognitivos, principalmente se os medicamentos psicotrópicos acima citados forem retirados. Também notamos melhora de sintomas motores na Doença de Parkinson, permitindo a redução da dosagem de certos medicamentos. Em quadros de autismo, notamos diminuição da agitação e da autoagressão que estes pacientes muitas vezes apresentam. Também percebemos alívio em crises epilépticas de difícil controle, especialmente em crianças com Síndrome de Dravet (um tipo de epilepsia grave), por vezes mantendo o tratamento convencional, em outras reduzindo a dose prescrita.
Como se calcula a posologia para cada paciente, e como são medidos os resultados?
Os resultados muitas vezes não são imediatos, e cada paciente precisa encontrar sua dose ideal, que vai sendo ajustada semanalmente. No meu consultório, a cannabis nunca é o tratamento de primeira escolha em todas as doenças citadas e não citadas neste artigo. Ela deve ser vista como opção e utilizada quando os medicamentos convencionais foram corretamente prescrevidos, mas não trouxeram benefício para o paciente. Nestes casos, inicia-se a cannabis em doses baixas, modificando os medicamentos em uso, até mesmo podendo retirá-los no momento propício.
Há aspectos especialmente benéficos e maléficos da utilização da cannabis por parte de doentes neurológicos?
Conforme já mencionei, o uso de cannabis em doenças neurológicas tem sido muito benéfico para substituir medicamentos neurolépticos, por provocar menos efeitos colaterais, e por melhorar a ansiedade e a qualidade do sono. Isto, por si só, é benéfico em quaisquer doenças, pois todas elas pioram quando há ansiedade e distúrbio de sono associados. Além disso, nas crianças com epilepsias de difícil controle e no autismo infantil, o efeito é benéfico. No entanto, devemos ter sempre cuidado com a introdução da cannabis, especialmente quando o paciente já estiver fazendo uso de medicamentos psicotrópicos, pelas possíveis interações medicamentosas ou a potencialização de efeitos colaterais, especialmente sedativos.
Os seus pacientes relatam efeitos colaterais?
Sim. Como todo medicamento, a cannabis pode provocar tontura, alterações do apetite, depressão, desorientação, dissociação, humor eufórico, amnésia, distúrbios de equilíbrio e de atenção, má coordenação dos músculos da fala, alterações do paladar, falta de energia, comprometimento da memória, sonolência, visão embaçada, vertigem, prisão de ventre, diarreia, ardência, ulceração, dor e secura da boca, náuseas e vômitos. Para reduzir estes riscos, devemos começar com doses baixas e ajustar de acordo com a reação de cada paciente, além de modificar os medicamentos já em uso na medida do possível.
A cannabis pode de fato substituir algum tipo de medicação?
Em princípio, a cannabis não tem o propósito de substituir qualquer medicamento já padronizado para determinada doença. Mas isso pode acontecer em situações específicas, como no caso de pacientes com Parkinson que melhoraram somente com a cannabis e Alzheimer em fase avançada. Nesse caso, a cannabis melhora a qualidade de sono e reduz a agitação, e pode ser usada em lugar de neurolépticos.
Qual futuro o senhor prevê para o uso da cannabis medicinal na neurologia?
Acredito que a cannabis medicinal terá uma evolução semelhante à de outros medicamentos que surgiram no mercado, os quais foram aperfeiçoados para provocar menos efeitos colaterais e interações medicamentosas, e para trazer mais benefícios para os pacientes. Também como aconteceu com outras drogas, há de haver um aumento de suas indicações terapêuticas, além de ser aceita cada vez mais de forma natural pela população e pela classe médica, ainda resistente.
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