Macarrão, dumplings e papel: quando você pensa em inovações chinesas, a última coisa que vem à mente é a cannabis. No entanto, os chineses foram os primeiros a propor o uso medicinal e documentado para a cannabis – e esse nem era o único emprego que eles tinham para a planta.
O uso da cannabis para fins medicinais remonta a milhares de anos. Diferentes culturas tinham diferentes maneiras de consumi-la. Aqui, vamos nos concentrar especificamente em um reino, duas pessoas e um gênero de cannabis chamado cânhamo.
Cânhamo! E a Cannabis?
O cânhamo é um gênero de cannabis conhecido por sua potência e durabilidade. Essas qualidades fizeram e ainda o fazem muito popular para uso industrial. Enquanto os chineses o usaram na produção de cordas para arqueiros e produtos têxteis (Abel, E.L. 1980, Marijuana, The First Twelve Thousand Years. Nova York: Plenum Press) a indústria hoje continua o utilizando para fabricar assentos de carro, papel e até combustível.
O cânhamo também é usado para a extração de canabidiol (CBD) para uso recreativo. O CBD é o segundo componente mais prevalente da cannabis, que é conhecido por apresentar qualidades anti-inflamatórias e é aplicado terapeuticamente em diferentes doenças, como a demência. O CBD é legalizado em muitos países porque o cânhamo tem pouco ou nenhum nível de tetra-hidrocanabinol (THC), o componente da marijuana que é considerado intoxicante e viciante.
Na China antiga, no entanto, eles não sabiam como extrair CBD e THC, mas tinham conhecimento sobre a planta inteira e suas qualidades medicinais e industriais. Eles estavam tão orgulhosos de seu conhecimento que até se referiam ao seu país como a “terra da amoreira e do cânhamo”.
Bem-Vindo ao Império
Os primeiros registros escritos conhecidos da história da China datam de 1250 AEC, da dinastia Shang (c. 1600–1046 AEC). A cannabis era conhecida na China antiga como ma e comumente utilizada na vida cotidiana. Mais do que um instrumento de guerra, o cânhamo era uma matéria-prima básica para a fabricação de têxteis. As pessoas comuns não podiam se dar ao luxo de usar a tradicional seda chinesa, então usavam roupas à base de cânhamo – até que os mongóis conquistaram a China por volta de 1.200 EC e apresentaram aos nativos o algodão.
No entanto, a inovação mais importante da China antiga foi o papel. Naquela época, ele era feito esmagando fibras de cânhamo misturadas a cascas de amoreira para formar uma polpa, que depois era submersa em água. Depois de subirem à superfície, as fibras emaranhadas eram removidas, colocadas em um molde e secas para se tornar papel. Vestígios de têxteis e papel feitos de cannabis foram encontrados no túmulo do imperador Wu (dinastia Han), do século I AEC.
Flores de sementes de cânhamo, ou ma ren hua, também foram encontradas em outro túmulo bem preservado, de 2.100 anos de idade, na província de Hunan. Essas flores estavam ao lado de inúmeros grãos, como arroz e trigo, o que indica que as sementes eram consumidas como alimento. Não está claro quais pratos eram feitos com sementes de cânhamo, mas parece que o mingau foi um deles. Era consumido como alimento principalmente por pessoas pobres, e também aplicado externamente para tratar uma variedade de doenças de pele, feridas e até queda de cabelo. Nos anos posteriores, as flores das sementes de cânhamo foram mencionadas na forma de extrato para fritar alimentos. Foi apenas por volta do século X que as sementes de cânhamo deixaram de ser uma das principais culturas de grãos na China, embora ainda sejam usadas hoje para produzir óleo de cozinha no Nepal.
Não está claro se os chineses antigos estavam tirando proveito dos efeitos psicoativos da cannabis. Alguns anos atrás, os pesquisadores descobriram dois quilos de cannabis de 2.700 anos escondidos dentro de uma tumba no deserto de Gobi. Como a cannabis escondida não era cânhamo, os pesquisadores suspeitavam que ela fosse usada para outros fins que não roupas ou produção de cordas. A principal tese para sua utilização indicava fins medicinais.
Uso Medicinal
O Imperador Vermelho
A cannabis é mencionada pela primeira vez como medicamento na China antiga no livro farmacológico The Herbal (Pen Ts’ao). Embora o original tenha se perdido na história, a lenda conta que, por volta de 2.500 AEC., o próprio Imperador Vermelho escreveu o livro, guiado por inspiração divina. Isso deu a ele o título “pai da medicina chinesa”.
O Imperador Vermelho, Shen Nung (2838 – 2698), governou a China por mais de 140 anos. Ele geralmente é retratado vestindo um casaco de folhas verdes. Segundo o mito, ele começou a escrever Pen Ts’ao como um catálogo de plantas que poderiam ser usadas terapeuticamente. Ele testou venenos e antídotos em si mesmo antes de listar centenas de medicamentos derivados de fontes vegetais, animais e minerais. Uma dessas drogas foi derivada de uma planta chamada ma, ou seja, a cannabis.
No entanto, ma era diferente de qualquer outra droga. Foi descrita como tendo características contraditórias: yin e yang. Yin (feminino) representa fraqueza, passividade e influência negativa na natureza, enquanto yang (masculino) representa potência, atividade e força masculina positiva. Quando equilibrados, yin e yang mantêm o corpo saudável e em harmonia. Como a planta feminina de cannabis possibilitou a produção de mais medicamentos, os agricultores chineses a cultivaram em vez da planta masculina, e a usaram para “tratar” a ausência de yin. Isso incluía tratamentos de problemas oriundos da menstruação, gota, malária, beribéri, constipação, reumatismo e até distração.
Uso cirúrgico
Os primeiros médicos chineses realizaram apenas procedimentos superficiais para o tratamento de furúnculos, úlceras de todos os tipos e pequenos tumores externos. Hua Tuo foi o primeiro a usar cannabis como anestésico. Diz a lenda que ele descobriu a qualidade medicinal das ervas ao tentar resgatar um cervo ferido, e depois provou algumas delas para descobrir qual deixaria sua língua entorpecida.
Durante o segundo século DC, Hua Tuo usou resina de cannabis misturada com vinho (ma-yo) para reduzir a dor em cirurgias. Isso permitiu que ele executasse procedimentos em órgãos internos que não conseguia alcançar com as agulhas de acupuntura tradicionais. Ele conseguiu, inclusive, realizar procedimentos como incisões no ventre e no peito.
Até hoje, Hua Tuo é conhecido na China como “Deus da Cirurgia”. Seu trabalho pioneiro em anestesia cirúrgica é conhecido como “ma-fei-san”, que em tradução livre seria “vinho borbulhante”. No entanto, a fórmula exata que ele usou foi perdida.
De acordo com o Romance dos Três Reinos, do século XIV, isso ocorreu devido à prisão de Hua Tuo após um de seus pacientes, um senhor da guerra chamado Cao Cao, suspeitar que Hua Tuo lhe ordenou uma cirurgia no crânio para matá-lo. Hua Tuo entregou o trabalho de sua vida a um guarda da prisão, para que ele passasse permanecesse vivo. No entanto, a esposa do guarda supostamente queimou a maioria das páginas; o marido conseguiu recuperar apenas algumas delas.
Remédios caseiros
O texto da Dinastia Song, Illustrated Classic of Materia Medica (Tu Jing Ben Cao, aproximadamente 1.070 DC) menciona uma receita que envolve cannabis para aliviar a dor intensa que inibe o movimento. A receita especifica que as sementes de cannabis devem ser embebidas em água e, em seguida, o sedimento é coletado do fundo da água, frito e moído para transformar-se em um pó branco e fino. Depois é fervido com álcool e tomado com o estômago vazio. Essa prescrição foi repetida em muitos textos posteriores sob o nome “vinho de semente de cannabis” (da ma ren jiu). Possivelmente era destinado a pessoas com “toxina do vento na medula óssea” e a dor que impede o movimento.
A cannabis também foi usada como componente em analgésicos antigos. Heart Text of Bian Que (Bian Que Xin Shu, 1127-1270 DC) menciona a flor de cannabis, chamada mahua, usada em combinação com a flor datura como um anestésico. Essa fórmula foi criada para diminuir a sensação de dor e era conhecida como “pó sagaz do sono” (shui sheng san). A flor da cannabis também foi mencionada como ingrediente anestésico em textos dos séculos XVI e XVII.
Cannabis como disciplina acadêmica
Quase mil anos antes da primeira universidade ocidental, a China fundou sua primeira Escola de Medicina. Foi durante o reinado da Dinastia Tang (cerca de 630 d.C.) e, juntamente com outras ervas, a escola ensinou as qualidades da cannabis para uso medicinal.
Mais tarde, na era da Dinastia Sung, várias universidades de medicina foram criadas para treinar médicos. Nessa época, muitas prescrições médicas foram finalmente padronizadas.
Algumas centenas de anos depois, The Great Herbal of Medicine foi finalmente revisado por Li Shi Chen (1517-1593), conhecido como O Grande Escritor de Livros Médicos. Li Shi Chen modernizou a linguagem, atualizou a lista de medicamentos e retirou o que ele considerou serem “medicamentos inferiores”. Sua versão do Pen Ts’ao lista quase 2.000 medicamentos (incluindo cannabis) e está em uso ainda hoje.
No entanto, uma análise descobriu que cepas de cannabis com propriedades psicotrópicas raramente eram aplicadas na medicina chinesa ou gradualmente se tornaram menos proeminentes. Isso pode ter ocorrido devido à preponderância reduzida de partes de plantas, como a inflorescência feminina na literatura de bencao (textos médicos antigos) ao longo do tempo. Outra causa possível é a confusão permanente em relação às partes da planta, o que levou à limitação da aplicação prática e da experiência de autores posteriores.
Antes e Hoje
A China antiga conhecia o cânhamo e se orgulhava dos muitos usos que encontrou para ela. O cânhamo foi amplamente utilizado como matéria-prima industrial na produção de têxteis e papel. Sua aplicação na guerra até deu aos arqueiros chineses uma vantagem sobre seus inimigos, cujos arcos eram feitos de bambu fraco.
As propriedades medicinais da cannabis também foram descobertas e reconhecidas desde o início, graças ao Imperador Vermelho. Além disso, elas foram usadas na prática médica por muitos anos, possivelmente já em 4.000 DC. Elas foram estudadas nas primeiras escolas de medicina e aplicadas pelo primeiro cirurgião chinês como anestésico em procedimentos médicos dolorosos. Como muitas outras ervas medicinais, a cannabis também era usada como base de remédios caseiros para reduzir a dor e outras condições médicas relacionadas. Muitos dos textos antigos que descrevem as qualidades da cannabis medicinal só foram revelados ao Ocidente quando a China foi reaberta em 1980. Hoje, a cannabis é estritamente ilegal na China, mas os textos que a mencionam são amplamente pesquisados e traduzidos para os idiomas ocidentais, dando-nos um vislumbre de como a planta foi usada e quais qualidades permanecem relevantes atualmente.
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