Quando o Dr. Vincent Maida começou a recomendar cannabis medicinal para pacientes com câncer, há mais de duas décadas, foi criticado por muitos de seus colegas da comunidade médica. Alguns anos depois, o Dr. Maida, hoje professor associado da Universidade de Toronto, começou a se perguntar se a cannabis poderia ajudar a resolver um problema comum à maioria de seus pacientes de cuidados paliativos, que sofrem com feridas crônicas e intratáveis. Cerca de 6% da população mundial sofrem de algum tipo de ferida crônica.
“O assunto [da cannabis] não fazia parte do currículo quando comecei a estudar medicina”, disse Maida em entrevista exclusiva ao The Cannigma. “E, claro, os estudantes de medicina são treinados para pensar de uma determinada maneira, e quem pensar fora dos parâmetros será considerado herege”.
Sua empresa, a VinSan Therapeutics, está desenvolvendo um tratamento à base de cannabis para essas feridas, às quais a medicina moderna não tem cura.
“Minhas descobertas e os resultados da primeira fase de testes foram impressionantes. Alguns pacientes já bem idosos conseguiram se curar completamente das feridas”, contou Maida. “Observei indivíduos com grandes lesões que tiveram seus tecidos regenerados”.
Como você começou a usar cannabis na prática médica?
Tenho mais de duas décadas e meia de experiência usando cannabis e canabinoides com meus pacientes, ao longo de 37 anos atuando na medicina. Tudo começou com os relatos dos milhares de pacientes que tive ao longo da minha carreira. Eu os ouvia contando que usavam os medicamentos e tratamentos normalmente prescritos para diversos quadros clínicos, sem ter uma resposta satisfatória para seus problemas e sintomas. No entanto, ao acrescentar cannabis ou canabinoides aos medicamentos, de repente passavam a observar resultados. Ao perceber que os compostos ajudavam e seus efeitos colaterais não causavam maiores problemas, comecei a estudar a literatura médica para me informar melhor sobre o sistema endocanabinoide. É algo que venho fazendo há quase 30 anos.
Ouve-se bastante falar que os médicos são apresentados à cannabis medicinal pelos pacientes. Parece ser difícil para um médico ir contra sua própria formação.
Dificílimo. Isso é resultado da falta de formação, na verdade. Aliás, na época em que entrei na faculdade de medicina, não se falava nada sobre o sistema endocanabinoide, embora as coisas estivessem começando a evoluir naquela época. Acho que o professor Mechoulam já havia publicado alguns artigos, mas, mesmo assim, o assunto não fazia parte do currículo. E, claro, os estudantes de medicina são dogmatizados para pensar de uma determinada maneira, e quem pensar fora dos parâmetros será considerado herege.
Quando comecei a utilizar canabinoides e ter maior experiência clínica nessa área, fui desprezado e visto como excêntrico, herege. Lembro-me de um amigo médico dizendo que eu iria para o inferno, porque estava recomendando algo satânico para meus pacientes. Daí você vê o nível de ignorância e estigma que há em todo esse campo. E é uma pena, porque existe cada vez mais respaldo científico para o sistema endocanabinoide e todos os elementos da planta de cannabis. E estamos só começando.
Em que casos você utilizou inicialmente a cannabis?
Como sou especialista em medicina paliativa, utilizava como complemento para pacientes com câncer em tratamento quimioterápico que sofriam de náuseas e vômitos resultantes do tratamento. Também a prescrevia para amenizar as complexas e severas síndromes de dor que costumam acometer esses pacientes, as quais são relacionadas diretamente à doença mas também as decorrentes do tratamento, como as neuropatias periféricas. Esses pacientes tomavam todos os medicamentos recomendados, mas sem obter os resultados necessários para seguir adiante ou mesmo para querer continuar vivendo. Foi assim que começou, basicamente no contexto do câncer.
Nos primeiros dias de minha experiência com medicina paliativa, tive outro momento de epifania: observei que a maioria dos meus pacientes com doenças em estágio avançado no cenário da medicina paliativa também apresentavam feridas. Aliás, há mais de dez anos, fui, talvez, o primeiro a publicar um estudo sobre os diversos tipos de ferida que esses pacientes costumam ter. Mais de 60% dos pacientes com doenças avançadas desenvolvem pelo menos um tipo de ferida. Então, basicamente, quando reflito a respeito, minha carreira é como um diagrama de Venn com três conjuntos: medicina paliativa, tratamento de feridas e medicamentos à base de canabinoides. E a interseção desses três conjuntos no meu diagrama de Venn metafórico representa minha pesquisa e minhas inovações, observando como os canabinoides ajudam não somente a controlar a dor e os sintomas, que é a função da medicina paliativa, mas também a melhorar e curar as feridas.
O que são feridas crônicas?
Dito de maneira simples, feridas crônicas são lesões que não cicatrizam. E existem diferentes parâmetros de tempo para isso. Alguns dizem três meses, outros seis. Mas são feridas que simplesmente não melhoram. Uma pessoa normal e saudável, com uma ferida profunda na pele, deve curar-se sozinha, sem necessidade de tratamento. No caso de alguém mais idoso, debilitado, um indivíduo com câncer ou alguma outra doença incurável, ou no caso de uma combinação desses fatores, sua capacidade de cura é bastante reduzida, por vários motivos. E esses são os pacientes que desenvolvem feridas crônicas. E não só isso: essas feridas ficam cada vez piores, podendo produzir alguns cenários. O indivíduo pode morrer por causa da ferida ou acabar desenvolvendo complicações que requerem amputação. Esses pacientes também são propensos a desenvolver quadros como sepsia, que, no caso de pessoas mais idosas e frágeis, é quase sempre fatal.
Infelizmente, os antigos paradigmas do tratamento de lesões observados no mundo inteiro simplesmente não estão produzindo os resultados desejados. E foi isso que me levou a pensar fora dos parâmetros convencionais. Na verdade, meu método de tratar feridas com cannabis é inovador porque o tratamento não está voltado só para as lesões, a abertura em si, mas para o paciente como um todo, considerando também os tecidos ao redor da lesão, que correm grande risco de rompimento.
Estudando os princípios básicos da ciência, cheguei à conclusão de que os mesmos elementos fisiopatológicos observados no leito da ferida, na abertura, por assim dizer, também existem no tecido circundante. Portanto, devemos tratar não só a ferida do paciente, mas o paciente como um todo, incluindo o tecido periférico.
Qual o objetivo do tratamento que você propõe?
Sua função é tratar a fisiopatologia básica da ferida. A cronicidade deve a um círculo vicioso, alimentado por uma inflamação crônica. Então, o primeiro benefício de minha fórmula é debelar a inflamação. É como reiniciar o computador quando ele trava. Você pressiona control-alt-del e pronto, o sistema é reiniciado. É isso o que minha fórmula faz.
Assim, começa-se “reiniciando o sistema”, tirando a ferida crônica desse estado de hiperinflamação. Mas vai além, mobilizando alguns fatores de crescimento, como o VEGF (fator de crescimento endotelial vascular) e o TGF-β (fator de crescimento transformador beta). Minha teoria é que minhas fórmulas também funcionam em nível epigenético. E a razão pela qual faço uma afirmação tão ousada é que sabemos que o sistema endocanabinoide é único, no sentido de apresentar capacidade de ligação intracelular e extracelular, o que não é muito comum, mas é pouco falado. De qualquer modo, é empolgante, porque se os canabinoides e os não canabinoides podem realmente se ligar aos receptores nucleares das células no nível das mitocôndrias, núcleo, retículo endoplasmático etc., podemos influenciar a expressão gênica.
Minhas descobertas e os resultados da primeira fase de testes foram impressionantes. Alguns pacientes já bem idosos conseguiram se curar completamente das feridas. Indivíduos com grandes lesões regeneram os tecidos, o que, para mim, é uma prova, pelo menos do ponto de vista clínico, de que minhas fórmulas e meu método estão realmente estimulando as células-tronco a regenerar tecidos e fechar essas lesões no corpo das pessoas.
Quais são os tratamentos existentes para feridas crônicas?
Sem querer desrespeitar os profissionais dessa área, os tratamentos existentes nada mais são do que curativos sofisticados, ou seja, não servem para nada. Quer dizer, existem muitas tecnologias avançadas por aí, células-tronco da placenta e fatores de crescimento, mas nenhuma delas produziu resultados positivos. E muitas, na verdade, foram retiradas do mercado por causa das sequelas que provocavam.
Você pode falar mais sobre os resultados observados em seus estudos?
No meu estudo de fase I (em que não há controle), concentrei-me não somente em feridas comuns, feridas triviais. Nessa fase, simplesmente submetemos os pacientes selecionados a tratamento. Mas no meu caso, selecionei pacientes que não haviam tido bons resultados antes, que passaram por uma série de tratamentos e tinham feridas por mais de seis meses, além de diversas complicações relacionadas a uma comorbidade patogênica. Então, tecnicamente, não é nem fase I, é quase fase II, porque estudamos feridas refratárias intratáveis bem graves, em pacientes muito doentes, incuráveis.
E quais as taxas de sucesso observadas? Como você define um bom resultado?
A meta clássica no domínio das lesões é seu fechamento, observando-se o tempo de fechamento. E é interessante porque, se você revisar a literatura médica, como eu fiz no trabalho para publicar meus artigos, verá que muitos estudos não citam o tempo de fechamento da ferida. E isso é o principal. Se não fechamos as feridas, na verdade, não realizamos nada.
Meus tempos de fechamento de feridas são os mais curtos em comparação com os dados sobre lesões intratáveis publicados mundialmente, como doença falciforme, calcifilaxia urêmica, calcifilaxia não urêmica e pioderma gangrenoso, que algumas das feridas mais complexas que existem. Estou conseguindo curá-las em tempos recordes, além de observar o alívio da dor como resultado secundário. Já publiquei alguns artigos mostrando que o uso de medicamentos tópicos à base de cannabis é capaz não apenas de aliviar a dor relacionada à ferida, mas também acabar com o uso de opioides. Um sucesso geral, porque estamos conseguindo tirar os opioides dos tratamentos.
Não tenho nenhuma amputação em meu histórico, e muitos dos meus pacientes vieram até mim procurando uma salvação. Vários cirurgiões já haviam lhes dito que a única solução era amputar o membro. Ainda não são resultados oficiais, mas notei uma grande redução no número de antibióticos prescritos a esses pacientes. E isso não surpreende porque, se começarmos a fechar a ferida, o corpo consegue se proteger das bactérias que tentam invadi-lo para destruir mais tecidos. É realmente emocionante.
Você pode contextualizar o problema das feridas crônicas? Qual sua dimensão? Quantas pessoas tendem a desenvolvê-las e em que casos?
A própria OMS declarou as feridas crônicas como uma das maiores crises de saúde global do mundo. Essa é uma informação. Cerca de 6% de toda a população do mundo têm ferida crônica. Não sou muito bom em matemática, mas quanto é 6% de 7,7 bilhões? Além disso, de novo, falando sobre o valor das despesas com saúde: nenhuma área em todo o sistema mundial de saúde cresce a uma taxa maior do que as despesas relacionadas a feridas, que é de 7,5% ao ano. Na verdade, para ser completamente transparente, essa área está empatada com a de diálise. Ou seja, os gastos com diálise e feridas estão crescendo globalmente a uma taxa anual de 7,5%. Pelo menos no caso da diálise, é algo que faz muito bem às pessoas. Minha mãe, por exemplo, faz diálise e ainda está viva. Portanto, o aumento dos gastos com diálise faz sentido para mim. O aumento dos gastos com feridas não faz sentido, porque os resultados ainda são insignificantes. Não há nenhuma área no âmbito da saúde que tenha resultados tão ruins quanto a das feridas.
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