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Como definir a posologia da cannabis?

Como definir a posologia da cannabis?

Um dos grandes desafios enfrentados por médicos e pacientes é compreender como definir a posologia da cannabis medicinal. Enquanto a maioria dos remédios tradicionais são prescritos com parâmetros rígidos, a prescrição de medicamentos à base de cannabis se baseia em aspectos mais sensíveis e abrangentes. 

Sabe-se que a cannabis interage com o sistema endocanabinoide do organismo. A reação, portanto, é totalmente individualizada, e a observação da reação do próprio paciente é um fator crucial para a definição da dosagem ideal. 

Outra variável importante é a composição a ser utilizada no tratamento. “Nos extratos de cannabis existem muitos tipos diferentes de fitocanabinoides ativos, como CBD (canabidiol) e THC (tetra-hidrocanabinol)”, afirma o biólogo brasileiro Renato Malcher, Doutor em Neurociência, especialista na utilização de cannabis com fins medicinais e autor do livro Maconha, Cérebro e Saúde, publicado em 2007 em conjunto com o também neurologista Sidarta Ribeiro. 

O médico Renato Malcher oferece informações sobre como definir a posologia da cannabis
Renato Malcher durante audiência no Senado em 2014. Foto: Edilson Rodrigues/Ag.Senado

Soma-se a essa “composição de fatores” o fato de a cannabis medicinal ter aplicação para diferentes quadros clínicos. Para cada um, procura-se um resultado específico. Hoje a cannabis medicinal está sendo utilizada de forma crescente, em todo o mundo, em casos de epilepsia, parkinson, glaucoma e síndrome do intestino irritável, entre outros. 

Experiência Individual Transformada em Conhecimento Geral

Todas essas variáveis, somadas à gravidade de cada caso, à resposta individual e também à tolerância de cada paciente ao medicamento, influenciam na hora de definir a posologia da cannabis medicinal. A percepção do paciente e de seu cuidador é um elemento fundamental nessa tarefa.

Naturalmente, os especialistas que já acumulam experiência com a utilização da planta acabam desenvolvendo uma visão aprofundada a respeito da posologia, fruto de estudos e da experiência cotidiana com os próprios pacientes.

Segundo explica Malcher, “o médico deve fazer uma titulação da dosagem, tomando como base as informações disponíveis nos artigos que relatam o uso dos extratos. O profissional identifica a faixa de dose efetiva com a quantidade correspondente de CBD e inicia o tratamento com uma dose na banda inferior dessa faixa, a qual vai aumentando conforme a resposta do paciente”. Esse processo é continuado até se alcançar o resultado almejado.

“Melhores Prática” na Hora de Definir a Posologia

A “melhor prática” no momento de definir a posologia da cannabis medicinal é começar por baixo, ou seja, com uma dose diária baixa que é aumentada semanalmente, caso necessário. “Se não houver urgência extrema, você pode iniciar, no caso de pessoas adultas, com doses de 20 mg a 30 mg por dia”, explica o neurologista Eduardo Faveret, coordenador do Centro de Epilepsia do Instituto Estadual do Cérebro Paulo Niemeyer (IECPN), no Rio de Janeiro.

O médico brasileiro Eduardo Faveret fala sobre como definir a posologia da cannabis em tratamentos médicos
Eduardo Faveret em palestra no Museu do Amanhã, RJ, em 2018. Foto: reprodução youtube

Segundo o médico, o aumento da dosagem, quando necessário, pode ser feito na mesma proporção da dose inicial. Por exemplo, uma pessoa que começa com 25 mg diárias pode subir para 50 mg na segunda semana, para 75 mg na terceira, 100 mg na quarta, e assim por diante.

“A evolução pode, no entanto, ser mais rápida, por exemplo de 50 em 50 miligramas”, detalha o neurologista. “Depende da pressa do paciente em alcançar resultados melhores ou da gravidade de sua situação.”

Dosagem x Massa Corporal

Em geral, as tabelas dos medicamentos “tradicionais” relacionam a dose diária com a massa corporal do paciente. Esse parâmetro, no entanto, não é adequado para o caso da maconha medicinal.

Ao citar casos relativos ao seu objeto principal de estudo, o autismo, o dr. Renato Malcher é taxativo: “Não existe uma dose definida desta forma por diferentes motivos. Primeiro, porque há publicações de resultados obtidos com extratos de diferentes composições. Segundo, os sintomas do transtorno do espectro do autismo podem ter causas diversas e aparecem em combinações variáveis em pacientes – portanto, cada caso é um caso. Terceiro, porque ainda não existe nenhum estudo clínico com o nível de rigor e a quantidade de pacientes suficientes de um tipo específico de autismo e usando um tipo específico de extrato”, diz.

O que vale para o autismo é válido também para os demais tratamentos. O dr. Faveret cita o largo espectro de possibilidades envolvendo as variáveis “dose ideal” e “massa corporal”. “No caso das crianças, se começa com 0,5 miligrama por quilo, podendo evoluir de meio em meio ou de 1 em 1 por semana”, afirma. “No geral, a dose fica entre 0,5 miligrama e 10 miligramas por quilo. Mas em pacientes com quadros mais complexos você pode subir para até 25 mg por quilo. Alguns centros norte-americanos chegaram a doses de 50 mg por quilo”.

Dr. Faveret ressalta a importância das distribuição das doses. “Na maioria das vezes, a dose ideal é dividida em duas vezes”, diz. “No entanto, para algumas indicações – insônia e enxaqueca, por exemplo – é possível ingerir uma única vez ao dia; em outras, três”. Dr. Malcher completa: “A quantidade de doses diárias varia, já que há efeitos agudos e efeitos que vão se estabelecendo ao longo do período de uso”.

THC e CBD

A composição do extrato da cannabis medicinal geralmente busca equilibrar as duas substâncias da planta que são mais usadas no momento: o canabidiol (CBD) e o tetra-hidrocanabinol (THC). Essa é uma variável fundamental na definição tanto do tratamento quanto da dose diária.

Como se sabe, o THC é a substância responsável pelo “high”, o efeito psicoativo da cannabis. Assim como quem usa a planta para fins recreativos, no caso do uso medicinal – sempre dependendo da dose e da tolerância própria de cada pessoa – o THC também pode provocar efeitos colaterais adversos e indesejáveis. Por exemplo, aumentar, ao invés de reduzir, quadros de ansiedade.

Daí a necessidade de haver um equilíbrio entre THC e CBD na posologia a ser definida, já que este último, além das qualidades medicinais próprias, ainda age como redutor dos efeitos colaterais do THC.

“Do ponto de vista da ação, os dois compostos têm essa possibilidade de ser meio ‘ying yang’, ou seja, de se equilibrarem em alguns aspectos”, afirma dr. Faveret. “O THC atua como agonista, um ativador dos receptores endocanabinoides. Já o canabidiol tem um efeito modulador alostérico negativo. O THC acelera a função desses receptores, enquanto o canabidiol vai no sentido inverso”.

A Vantagem das Combinações na Definição da Posologia da Cannabis

O dr. Renato Malcher ressalta os resultados positivos da combinação entre as duas substâncias. “O THC sozinho pode causar picos de ansiedade e mesmo desencadear surtos. Por outro lado, o CBD usado isoladamente pode causar irritabilidade”, compara.

“Em ambos os casos, esses efeitos adversos dependem da pessoa e da dose. Mas, de uma forma geral, a combinação de ambos em proporções adequadas a cada paciente reduz os efeitos colaterais e amplia os efeitos positivos”, afirma.

A proporção de CBD nos medicamentos é, normalmente, bem superior à do THC. “Em geral, os óleos importados dos Estados Unidos, Israel, Canadá e outros lugares têm em torno de 20 mg de canabidiol para 1 mg de THC. Essa é uma proporção frequente, utilizada para muitas indicações”, explica o dr. Faveret.

Ele lembra, porém, que em casos específicos a diferença pode diminuir e chegar a proporções de 1 para 1. “Óleos equilibrados em 1 para 1 foram aprovados para uso na esclerose múltipla e para tratamento dos espasmos e da dor, melhorando também a função da bexiga desses pacientes”, conta.

THC: Psicoativo Sim, Mas Superpoderoso

Segundo Faveret, o THC tem efeitos benéficos em vários tipos de tratamento. Em caso de câncer, afirma o médico, pode ser usado como “coadjuvante” no combate aos efeitos da quimioterapia (náusea, vômito, falta de apetite) ou mesmo como agente anticancerígeno.

Em casos de glaucoma, ajuda a reduzir a pressão intraocular e a proteger a retina, enquanto no Parkinson ele diminui os tremores associados a esse mal. O THC atua também como anti-inflamatório, no combate a dores crônicas, no tratamento da epilepsia, de Alzheimer e da asma. “Em geral, para estes quadros, eu costumo combinar THC com CBD. Com a utilização de dois óleos, um mais rico em canabidiol, outro em THC, a proporção pode ser individualizada”, comenta.

Nos casos de autismo, afirma Malcher, a administração equilibrada de THC e CDB traz bons resultados. “Juntos, eles melhoram o estado de humor, reduzem ansiedade e o nervosismo, reduzem a hiperatividade e facilitam a atenção e a conexão social. Por fim, também melhoram a qualidade do sono”, conclui.

Conclusão

A forma ideal de definir a posologia da cannabis depende de inúmeros fatores e é fundamental para o sucesso dos tratamentos. São considerados aspectos diversos, que passam pela reação individual, nível de tolerância, a gravidade da doença e o resultado buscado, o transtorno em tratamento e o tipo de extrato utilizado. Portanto, o acompanhamento médico e o relato do paciente ou de seu cuidador são fundamentais para se chegar à dose ideal para cada um.

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